Por Adão Alves
Aquele garoto estava sempre ali, todos os dias, na mesma hora e no mesmo lugar. Assim que o sol se põe ele chega. Quando o sol está prestes a nascer e iluminar aquela doca, o garoto se vai. Tinha sido assim por todos os dias.
Eu costumava observá-lo se postar diante do mar e olhar para a imensidão azul que refletia o tom negro do sol, tornando-se tão escuro quanto o teto que o cobria. Ele não se movia, apenas postava-se ali.
Eu comecei a preocupar-me com ele. Afinal de contas, o que fazia um garoto solitário naquele local, sozinho durante toda a madrugada sombria? Foi assim que me aproximei dele pela primeira vez.
Ele tinha os olhos voltados para baixo em uma feição triste. A lágrima alcançava a porta da sua alma mas não conseguia lançar-se abaixo. Seus cabelos eram negros como a escuridão e tão bagunçados quanto se possa imaginar.
- Qual o seu nome garoto? - perguntei com solidariedade em meus gestos.
- Eu não possuo um. Pode me chamar do que você desejar nobre rapaz.
- Como não possui nome? - Perguntei admirado ao ouvir a voz doce do garoto. - Todos temos nomes.
- Eu não. Não sou como você, nem como aquele mendigo que dorme no píer seis. Tampouco sou como aquele jovem que transa com sua namorada todos os fins de semana atrás dos containers, em estado de oxidação, que ficam armazenados próximos à doca oito. - Respondeu sem mover sequer a palpebra. - Meu nome não existe, assim como eu não existo para o mundo.
- Como não rapazinho? Eu o vejo.
- Você não compreenderá rapaz. Não agora.
- E porque vem pra cá, pra doca sete todas as noites?
- Aqui é meu lugar. É daqui que vejo tudo o que você não pode ver. Não falo somente daquele senador escondendo dinheiro dentro de seu iate, muito menos daquele rapaz de classe média que estrangula aquela prostituta na doca 10. Amanhã a polícia encontrará o corpo, mas não o meliante.
Olhei ao meu redor, mas nada vi. O garoto só poderia estar a brincar comigo.
- Meu jovem, não vejo nada do que estás a mencionar. Nada.
- Você fecha seus olhos meu amigo. Por isso não vê, mas está bem ali.
Continuei não vendo nada.
- Você ficará aqui toda a noite? Não sente frio?
- Digo sim par as suas duas perguntas amigo. Mas o frio é apenas uma sensação. Você deveria valorizá-la um pouco mais. As sensações são intensaas e as palavras são insensíveis, insignificantes. Procure sentir, não busque palavras para descrever o que tu sentes.
Observei o garoto imóvel. Ele continuava com a cabeça baixa, e a lágrima não saltava dos seus olhos negros.
- Porque fica olhando para baixo todo o tempo?
- Não estou olhando para baixo. Como eu disse eu vejo você, aquele rapaz que acabara de asfixiar aquela bela moça, que vendia seu corpo por necessidade. Eu vejo mais que você sem mover meus olhos. Mas creio que estás preocupado com minha posição. Eu apenas lhe digo que esta é a dor. A mágoa. Uma mistura de tristeza e solidão. A lágrima. Eu estou assim esperando pelo dia que ela caia. Nesse dia perderei minha inocência. E é por isso que venho apenas à noite. O sol pode secá-la antes que caia. Eu não desejo ver o mundo como você.
- O que há de errado comigo garoto? - perguntei com admiração.
- Você não vê. O mundo lhe rancou sua inocência. O sol secou-a para você. Eu quero continuar a acreditar no amor, ter o corpo de um adulto, mas conservar em meu peito, a sabedoria de uma criança. - Pela primeira vez ele se moveu, mas começou a se distanciar, ainda de cabeça baixa. - tenho que ir meu amigo. O sol está prestes a nascer.
Enquanto partia, pensei ter visto uma gota escorrer pelo seu rosto. desde aquele dia não mais o vi.
Passados alguns anos apareceu um rapaz no mesmo local, de cabeça baixa, na doca 7. Saí do meu local de trabalho e fui falar com ele. Ele me lembrava aquele jovenzinho de outrora. Era impressionante como pareciam. A cabeça voltada para baixo, a lagrima quase pulando de suas órbitas e seus cabelos bagunçados e negros, pendiam de sua cabeça até seus ombros. As vestes pretas. O olhar fixo.
- Meu jovem, o que faz aqui? Preciso saber, pois sou o vigia aqui do porto.
- Olá meu velho amigo! Estou aqui novamente para que minha lágrima caia. Você continua o mesmo de sempre. Ainda não abriu seus olhos não é mesmo. Não viu aquele jovem se tornar um pedófilo? Ele fora preso ontem pela manhã. Fitas com cenas horríveis foram confiscadas. Irá passar o resto de sua vida por tras das grades. Aquele outro jovem se tornou um homem desonesto, trai sua mulher todos os finais de semana. E ainda bate em sua ex-amada quando está bêbado. O senador está livre. Teve seu mandato cassado, mas a fortuna que acumulara deixou-o com uma vida saudável assegurada. Você tem aparência cansada.
- São os anos de vida meu rapaz. Mas o que traz aqui, que lágrima é essa que tu portas agora?
- Essa lágrima é a dor. A busca por um amor puro, inocente, verdadeiro. Ela, penso que vá demorar a cair, meu amigo. Acostume-se com minha presença. Não farei mal algum pra você. Apenas quero que ela salte como a outra fizera no passado. Não quero que o brilho do sol a seque. Por favor meu nobre amigo, deixe-me ficar.
Comovido com o jovem, deixei que ele ficasse. Vários anos se passaram, ele já era um homem formado. Deveria ter cerca de vinte e cinco anos, e ainda frequentava o lugar todas as noites. Mas eu morri. E até o dia de meu óbito, ele frequentaava a doca sete. Não sei o que ocorreu com ele. Isso já faz tanto tempo. Ele deve ter morrido também.
Eu deveria ter me encontrado com ele aqui, neste mundo, mas acredito que sua pureza o levou para um lugar melhor. Agora, depois de morto, posso ver os jovens, o senador. Mas minha vida se fora. Não há mais para onde fugir. Sofreu em vida, mas deve ter encontrado a felicidade após a morte. Era definitivamente uma pessoa muito sábia.
1 comentários:
Qto sentimento é possível perceber nessa sua ficção...um dos melhores ao meu ver...Parabéns!!
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